25 de setembro de 2019

Uma angústia melhor do que eu

Essa cidade (tão cuturalzinha, nas propagandas, tão legal) guarda uma hostilidade especial no entorno da estação de ônibus. São fileiras de barracas preenchidas por dorsos nus amorenados, corpos para os quais não se estende auxílio das mãos apressadas que passam - entre as quais as minhas mãos estavam, entre as que não ajudam. São homens idosos há séculos, mulheres com o rosto escamado pela fumaça oleosa dos escapamentos, crianças. Por eles eu passo, professor recém-formado; alguns dias para ser chamado de filho da puta por algum aluno; alguns dias para presenciar a chegada da polícia na escola, ante agressões mais sérias. Mas passo vindo desse único cômodo que consigo alugar com meu salário parcelado, não de uma barraca aos pés desse construto de insânia que é a estação. O lixo arquiteta um quintal, na frente desses olhos pretos, o lixo próximo do posto de saúde de onde alguns deles invejam os pacientes que têm leitos. Passamos ilesos, passamos curvados e infelizes, mas ilesos.

Até que o frio.

Era segunda-feira, se não me engano, esse dia escorrendo arrependimento pelos caninos. Ao descer a escadaria gorda da estação, virei meus passos para esse minúsculo bairro, ausente de urbanistas e trasbordando restos de carvão, e vi um de seus desmoradores deitado de costas para a rua, quase completamente nu, no frio das 6h. E me angustiei. Ora, eu sei o que é minha angústia, cotidiana e mesquinha, eu reconheço a face da minha empáfia. E aquela angústia não era minha. Era uma angústia melhor do que eu, como engendrada por Cristo, uma angústia de amor. Naquele instante, rodei os olhos pelo movimento interno da avenida, pelas lojas, portas, viaduto, casas, em busca de um lugar para comprar um cobertor. Mas não parei, mesmo que tivesse achado uma loja de mantas, mas não me virei, e prossegui, espantado pelas lágrimas melhores do que eu a brotar para fora de mim. Meu Pai, até quando terei que suportar-me? As pernas seguiam firmes, o coração gritava. Meu Pai, até quando terei que suportar-me? Na minha prece canalha, nessa fúria ambígua, depois de tantos metros de deserto, uma idosa me parou, pedindo algo mais possível, pedindo café, comida.

Embora banal, esse texto culmina naquela mulher. Ela sabia que estava ali para ajudar? Mas se foi ela quem veio pedir ajuda! Labiríntico caminho. Meu peito se aquietou, depois dela, porque ela veio me auxiliar a auxiliar, dando ao homem que desejava um fardo, mas não podia carrega-lo, um pesinho para cumprir. Como uma criança, que quer ajudar o pai com o martelo, mas não o aguenta, e ganha um martelo de brinquedo. Continuo mau, vaidoso e mau, por isso sei que foi Deus quem nela pediu e que em mim realizou. Deus nos presenteia com martelos de brinquedo. Luzidio caminho. Aquele homem nu continuou dormindo? Este homem nu que sou despertou?

24 de setembro de 2019

Os injustos, o Justo

Um grande risco para a própria honestidade é este: crer-se bom só porque outra pessoa é ruim.

Vejam: um homem fumava debaixo da marquise, bafejando os traços sinuosos de fumaça no rosto dos passantes, enquanto outro homem, bêbado, cambaleava por ali, trombando nas mesmas pessoas da calçada. Era meio-dia. Os dois homens eram odiados pelos que passavam, julgados, mas dentro de seus corações eles pensavam mal apenas um do outro. "É melhor fumar do que ser esse bêbado que tromba em todo mundo", o fumante meditou. "É melhor beber do que poluir o ar como esse idiota", o bêbado refletiu. E as pessoas que por eles passavam, pensando o pior dos dois, ao tentar desviar de ambos trombavam em mais alguns, que também internamente xingavam a eles e trombavam em outros, etc, etc, etc.

Um grande risco para o próprio caminho é este: crer-se no caminho certo só porque outra pessoa está no caminho errado.

Vejam: há quem xingue e pense "pelo menos não bato". Há quem bata e pense "pelo menos não xingo". E há quem vendo estas duas pessoas pense que age com justiça, apenas porque não xinga nem bate, ou pelo menos porque só faça isso em seu próprio coração. Quem mata, está errado. Mas quem pensa em matar, como ousa dizer que tem as mãos mais limpas do que as mãos do assassino?

"Ouvistes que foi dito aos antigos: 'Não matarás; mas quem assassinar estará sujeito a juízo'. Eu, porém, vos digo que qualquer que se irar contra seu irmão estará sujeito a juízo", disse o Justo.

E, como sempre, a sabedoria está em Sua voz.

Eu me ofendia com as feministas, quando elas diziam que os homens (no sentido de gênero masculino) são estupradores em potencial. Hoje não me ofendo, e ainda completo: tudo o que os homens (no sentido de espécie humana) são de ruim, eu também sou, em potencial ou na prática. "Pode um ser mortal ser perfeitamente justo diante de Deus?" - eu não posso.

Compreender que em todos os povos, em todas as nações, todos os indivíduos têm consciência de uma lei maior do que eles próprios, e que fracassaram ao tentar cumprir essa lei, constitui o início da real liberdade. O próximo passo é confiar que Jesus, o supracitado Justo, foi quem cumpriu integralmente esta lei, sendo assassinado em nome dos injustos que creem nele, justificando-os.

Porque se apenas o Justo pode jogar a primeira pedra contra quem erra, e a primeira pedra não foi jogada, quem mais ousará apedrejar quem quer que seja?

"Quando Jesus se ergueu, não vendo a ninguém mais, além da mulher, disse a ela: 'Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou?' Disse ela: 'Ninguém, Senhor.' E assim lhe disse Jesus: 'Nem Eu te condeno; podes ir e não peques mais.'”

Amém!