9 de janeiro de 2024

Augusto Matraga sou eu, o salvo

"A Hora e a Vez de Augusto Matraga", conto de João Guimarães Rosa, é uma história que fala direto e firme com meu coração de salvo por Cristo. É a história de um homem muito mau, pior do que é de costume todos sermos, explorador, infiel, terrível, que passa pelo abismo das muitas humilhações possíveis, quase morto pensa em Jesus, tem suas feridas tratadas por um casal que lhe adota, converte-se, torna-se instrumento da Justiça, luta e morre.

Quem já leu o conto (ou viu alguma versão cinematográfica) sabe o que significou tornar-se instrumento da Justiça, tanto no auxiliar dos irmãos, quanto no duelo final com o bando do personagem mais bravo do sertão; pois Deus é tanto amor (1 João 4:8) quanto fogo consumidor (Hebreus 12:29). Esta significação, essa senda, passa desde a compreensão do próprio pecado, como vemos em seu bonito diálogo com o padre:

— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!

— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum... 

Passando pelo sentimento de impotência nesse mundo, resumido também pelo lindo diálogo com sua mãe adotiva:

— Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!...

— Não fala fácil, meu filho!... Dei’stá: debaixo do angu tem molho, e atrás de morro tem morro.

E o reconhecimento da Graça:

Então, tudo estava mesmo muito mudado, e Nhô Augusto, de repente, pensou com a ideia muito fácil, e o corpo muito bom. Quis se assustar, mas se riu:

— Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim...

— Louvor ao Divino, meu filho!

E, uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom se levantar. Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?!... Não era pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar...

E isso foi pensado muito ligeiro, porque já ele enrolava a palha, com uma pressa medonha, como se não tivesse curtido tantos anos de abstenção. Tirou tragadas, soltou muitas fumaças, e sentiu o corpo se desmanchar, dando na fraqueza, mas com uma tremura gostosa, que vinha até ao mais dentro, parecendo que a gente ia virar uma chuvinha fina.

Não, não era pecado!... E agora rezava até muito melhor e podia esperar melhor, mais sem pressa, a hora da libertação.

Até Augusto chegar naquilo que quem já leu sabe e quem não leu saberá se ler.

O que me alegra e faz o reconhecimento ocorrer entre este personagem e eu é a nossa salvação, este vislumbrar parcialmente um caminho que de tão longo dá vertigem, e que de tão eterno dá certeza. Este "ontem já era hoje, mas eu não sabia" que se torna "amanhã, quando entender, hei de sorrir". O coração perdoado primeiro por Deus e depois por si mesmo. Sempre alegre, desde então.

Alberto da Costa e Silva, amigo de Rosa, contou, em uma entrevista, que João dizia: "Eu quero escrever de tal maneira que, quando chegar no Juízo Final, valha". Augusto Matraga, que não existe ou existiu, tinha o mesmo desejo de transformar a mesquinharia da própria existenciazinha em Louvor. Matraga, João, eu, tantos outros!

Quando chegar no Juízo, que valha! Porém, já fui salvo.